Home  > Notícias do Varejo  > Entrevista: em busca de sentido por Mário Sérgio Cortella

Entrevista: em busca de sentido por Mário Sérgio Cortella

Para filósofo, ter consciência das razões pelas quais se faz ou se deixa de fazer algo é fator decisivo para o resultado de profissionais e organizações.

REVISTA: MELHOR GESTÃO DE PESSOAS (julho/2014)

Qual a importância do propósito na vida de um indivíduo?

A coisa mais degradante para uma existência é ser vazia, superficial, venal. O que é uma vida banal? É aquela em que se vive de maneira automática, robótica, sem uma reflexão sobre a própria vida e sem consciência das razões pelas quais se faz o que se faz. Usando uma imagem religiosa, na qual eu não tenho crença direta, mas que nos serve: algumas religiões nos falam, entre elas, por exemplo, a judaico-cristã, em Juízo Final, o momento em que uma divindade vai te fazer as grandes perguntas para julgar a tua vida, se ela foi uma vida que valeu ou não. Provavelmente, as perguntas da divindade serão: “O que fez e fez por quê? “O que não fez e não fez por quê?”, “O que fez e não deveria ter feito, por que o fez?”, “O que não fez e deveria ter feito, por que não o fez?”. Essas perguntas são sobre a percepção de sentido, que uso na dupla acepção, de significado e de direção.
Afinal independentemente de qualquer crença de natureza religiosa, na suposição científica de que nós temos apenas uma existência, ela não pode ser desperdiçada. Eu gosto de citar o grande gaúcho Aparício Torelli, o Barão de Itararé, que dizia: “A única coisa que você leva da vida é a vida que você leva”. O que estou buscando? Uma vida com propósito é aquela em que eu entenda as razões pelas quais faço o que faço e pelas quais deixo de fazer.

Como essa busca se articula no mundo do trabalho?

Hoje, no mundo do trabalho, cada vez maus importa a pergunta sobre o propósito. E ele não é tão imediato, boa parte das pessoas hoje deseja no emprego algo que ultrapasse o mero ganho salarial. Eu quero reconhecimento, ser valorizado por aquilo que faço. Não quero que meu esforço seja desperdiçado ou inútil. E, ao mesmo tempo, que ele não seja mal intencionado se sou uma pessoa de boa intenção. Por isso, não quero me compor com uma imagem clássica de Charles Chaplin em Tempos Modernos. O mais triste naquela obra do Chaplin não é o automatismo do movimento da linha de montagem, em que ele, mesmo após a parada da esteira, continua se movendo. É que ele cai por dentro de uma máquina, passa por todas as engrenagens e sai vivo do outro lado, o que é absolutamente impossível. Mas não numa lógica em que você é parte da máquina e, portanto, mais uma engrenagem. Até algum tempo atrás, não se colocava tanto a questão sobre os propósitos, porque, numa vida que era muito menos complexa, a intenção principal era sobreviver. Isto é, ganhar recurso para montar sua família, ter um patrimônio que se pudesse deixar. Numa sociedade que hoje é focada um pouco mais no indivíduo, a ideia de propósito está marcada por um conceito que já existiu e voltou que é realização. E a palavra “realizar” tem duas acepções, no português e no latim e inglês. Realizar no sentido de “tornar real”, mostrar a mim mesmo que sou a partir daquilo que faço. E to realise, no sentido de “dar-me conta”. Isto é, a minha consciência. Essa realização que a vida precisa trazer, no mundo das organizações, é ligada à gestão de pessoas. É preciso que se tenha claro as intenções daquilo que se faz e as razões pelas quais aquilo existe.

Pode citar um exemplo?

Hoje, muita gente se recusa a atuar em algumas atividades que sejam danosas à vida coletiva. Então, não é só um emprego, algo em que faço o que me mandam. Eu quero saber para que serve o que estou fazendo. Porque eu não quero ser apenas um inocente útil. Quero que a minha atividade tenha consciência. Essa ideia de vida com propósito retoma um conceito de Karl Marx, no século 19, que é a recusa à alienação, que é aquele que n&atatilde;o pertence a si mesmo. Em latim, se usavam duas expressões para falar do não-eu. O eu é ego. E o não-eu pode ser alter, que é outro, ou alius, que é o estranho, de onde vem “alienígena”, “alheio”, “alienação”. Quando, por exemplo, você financia um carro, ele vem com um certificado de alienação fiduciária, isto é, você tem o uso, mas não a posse. O conceito de alienação, que vai ser trabalhado por Hegel, depois por Marx, é forte porque alienação é tudo aquilo que eu produzo, mas não compreendo a razão. Isto é, sou apenas uma ferramenta para que as coisas aconteçam, mas não decido sobre o destino daquilo que faço. Esse trabalho alienado vem produzindo uma série de desconfortos nas pessoas. Eu, trabalhador, colaborador, funcionário, quero ter clareza daquilo que faço, porque isso dá mais sentido a mim mesmo.

Do ponto de vista da gestão, uma empresa concentra pessoas que têm essa clareza e outras ainda cujo sentido é trocar tempo por remuneração. Como a liderança pode lidar com isso?

Fazer com que haja oportunidades em que esse tema de propósito do que se faz possa vir à tona. Por exemplo, há uma diferença entre cansaço e estresse, que é algo que se fala muito no mundo do trabalho, com razão. Cansaço resulta sempre em esforço intenso. Estresse vem de um esforço sem sentido. Dançar a noite toda, cozinhar para bastante gente cansa, mas não estressa. O que estressa? Aquilo que não entendo o propósito. Segunda-feira, 6h seu despertador toca, você quer dormir mais um pouco. Isso é cansaço. Você não quer levantar, isso é estresse. A lógica da diferenciação é que cansaço você resolve descansando, estresse você só consegue evitar se compreender a razão do que está fazendo. Há pessoas que têm menos envolvimento com essa temática, mas hoje há um valor organizacional, que uma pessoa mais consciente das razões pelas quais faz aquilo que faz é muito mais eficaz. Não é uma questão de boa intenção da empresa. É um valor de produtividade, competitividade e, portanto, precisa ser lidada com a área de RH como algo a ser tematizado, criando circunstância que favoreçam a reflexão sobre o propósito e, também, que a empresa consiga desnudar, no limite da privacidade e do sigilo de negócio, quais são as razões pelas quais se faz. Algumas, na área de produção industrial, conseguiram isso de modo muito curioso, fazendo com que houvesse um rodízio nas várias funções. Nos times autogerenciados em outros tempos, o rodízio permitiria uma visão mais completa, dado que o fordismo e o taylorismo acabaram introduzindo aquele parcelamento da atividade que tirou uma visão mais geral do resultado do que se faz. Alguns até poderiam dizer que “seria muito bom se o trabalhador fosse obediente, fosse servil, não ficasse pensando, apenas fazendo”. Isso não é verdade, porque uma pessoa com essa condição pode ser pouco produtivo, porque não tem iniciativa, não tem autonomia, nem criatividade, portanto, pode ser substituída por um robô. E a palavra robô vem do sérvio robota, que significa “escravo”, aquele que faz o que lhe é ordenado. Hoje, uma empresa inteligente tem seus funcionários como aqueles que também pensam em razão daquilo que estão fazendo, inclusive porque isso permitirá que se pense outros modos de fazer aquilo que se faz e ganhar produtividade, competitividade, rentabilidade, lucratividade e perenidade em relação ao próprio negócio, isto é, inovação.

As gerações que estão chegando ao mundo corporativo têm essa característica?

Sim. Mas isso tem uma dupla dimensão. De um lado, algo perigoso nos tempos atuais, que é a ideia de “vou fazer só o que gosto”. Porque uma parte daquilo que faço, o resultado final eu posso gostar, mas do intermeio nem sempre. Por exemplo, eu sou alguém de que dá aula há 40 anos e gosto demais. Mas não gosto de corrigir prova e não conheço ninguém que goste. Eu gosto de cozinhar, mas lavar louça não necessariamente é prazeroso pra mim. Essa relação causa uma certa confusão para as novas gerações, que supõem haver a capacidade hedonista de que tudo será prazeroso. Nem sempre. O que é positivo na nova geração? Ela não quer um trabalho que seja automático e robótico. Ela quer compreender a razão de estar fazendo o que se faz. Mas ela, por outro lado, nem sempre se prepara para o esforço que tem desgaste, em que não há prazer contínuo. É preciso que a área de RH trabalhe nessa dupla dimensão. Não deixar de oferecer às novas gerações a condição de poder fruir o local de trabalho como sendo parte do propósito de sua própria vida, mas, por outro lado, mostrar que é necessário fazer coisas que não são prazerosas e fáceis. Para as coisas acontecerem é preciso esforço. Certa vez, o pianista Arthur Moreira Lima terminou um concerto magnífico e, ao final, um jovem&nbsnbsp; falou: “Gostei demais do concerto, eu daria a vida para tocar piano como o senhor”. E ele respondeu, “Eu dei”. Ou seja, 30, 40 anos, de 9 a 10 horas por dia. Cautela com expressão “eu só quero fazer o que gosto”. Para ter resultado que eu gosto nem sempre faço o que quero. Porque é inerente a qualquer processo de produção que haja desgaste: do tempo, do espírito, da peça, da natureza. E esse desgaste poderá ser negativo se eu não entender daquilo que estou fazendo. Mas se tem um objetivo, que é o propósito maior, esse desgaste será compensado pelo resultado.

Há ai uma ética do esforço. A firmeza de propósito resulta de uma fundamentação no campo ético?

A ideia de consciência sobre os propósitos está ligada à noção de valores. Quais são os meus valores? O que eu acho que vale e o que eu acho que não vale. A minha vida valerá de que modo? É uma vida com valia ou sem? Qual a valia que eu quero nela colocar? Para que sirvo na estrutura em que atuo? O campo ético é decisivo porque lida com valores que fazem com que eu tenha uma conduta de vida. O propósito está conectado também a está percepção. No entanto, há pessoas que podem ter maus propósitos. Elas não deixam de ter uma ética maléfica, mas não deixam de ter valores e princípios de conduta. O que significa que alguém que queria uma vida decente precisa de valores e propósitos decentes, que não sejam destrutivos, autofágicos, degradantes. Bons propósitos são aqueles que elevam o indivíduo e a comunidade na qual está inserido. Ortega y Gasset diz “eu sou eu e a minha circunstância”. Quando eu chego numa pessoa, numa relação afetiva, num grupo de amigos não estou chegando absolutamente isento do que está na minha história. Quando caminho é com todas as minhas coisas. Ora, se Ortega y Gasset classifica o indivíduo não como uma mera identidade, mas com sua história com outros, o mesmo vale em relação a essa questão. Qual o meu principal propósito de natureza ética? Não ter uma vida que seja degradada, mas elevar comigo toda a sua circunstância, aqueles que comigo estão. A &eaceacute;tica entra nesse circuito porque o propósito da vida coletiva e não só individual deveria ser fazer com que a vida fosse melhor para todos e todas.

As empresas  têm ouvido bem os recados do público interno?

Nos últimos 20 anos, entrou no circuito das empresas ter uma visão e uma missão. Mas nem todas fizeram algo decisivo, que é estimular o indivíduo a pensar qual é a missão dele. Supor que alguém vá admitir que a visão e a missão dele dentro de uma empresa sejam as da empresa é não entender a questão da presença nossa na realidade. Hoje, há uma redução dentro daquilo que se  chamava lealdade do trabalhador, porque uma parte das organizações acaba sendo cínica. Ela anuncia a visão e a missão, coloca um cartaz, mas no cotidiano ele não percebe isso. Por isso, as empresas inteligentes se antecipam e fazem um levantamento, um inventário  de como cada um está se sentindo. Pode parecer uma psicologia excessiva, mas não é. Sendo um trabalhador, me sinto importante ou apenas usado? Sinto que aquilo que faço é reconhecido ou eu não tenho nenhuma valia? Isso muda o estado interno de ação e é um valor competitivo. Uma organização na qual uma pessoa se sinta valorizada naquilo que faz, ela vai ter muito mais capacidade de fazer aquilo que precisa fazer. Pensar num propósito individual, num coletivo organizacional, é algo que tem que vir à tona. A liderança, os gestores precisam pensar em como criar essas circunstâncias, que substituam aquela linguagem belicista, com que o mundo das organizações trabalhou até há pouco tempo, com termos como “nossas forças, estratégia, tática, nossos homens, pega, mata, esfola”. Porque, como diria o grande Gandhi: “Olho por olho e uma hora acabamos todos cegos.”

REVISTA: MELHOR GESTÃO DE PESSOAS (julho/2014)